terça-feira, 21 de abril de 2020

Nova Temporada: Propósito

Abri a porta e olhei todo o banheiro. Ele estava exatamente como antes da demolição. A cortina azul, as escovas de dentes e até o cheiro da erva, que mesmo depois de muitas lavagens e reformas, era igual. "Esse cheiro está entranhado nessas paredes" pensei. Levantei a tampa do vaso e sentei, olhei tudo ao meu redor e lembrei de quantas vezes já fumei aqui e senti a presença das entidades que um dia estiveram aqui comigo, coloquei levemente a mão na banheira e suei frio, abaixei a cabeça e lembrei da primeira vez que morri ali, estática, olhando para o teto. 

M: Você está pronta? - Musa entrou no banheiro e levantou minha cabeça - Ei?! Tem certeza que quer fazer isso, pelo o quê... Milésima vez? - Olhei para Musa e a voz dela me confortou. 
L: É o processo, viver, morrer, renascer, firme e forte feito um touro, não sei por que você sempre sente tanto - Comecei a tirar os sapatos. 
M: Deve ser porque sou eu que fico com a parte dark do processo... - Musa falou revirando os olhos.
L: Eu morro e você fica com a parte dark? Really?? - Falei tirando o casaco e a calça. 
M: Gata, você é suicida, não ouve ninguém, O Cara da Roda Gigante nem deve imaginar que você está fazendo isso mais uma vez... - A Musa girou as torneiras da banheira. 
L: Até ele sabe que isso é necessário, que é parte básica de quem eu sou, renascer, como disse, é o processo... Poderia fingir que está do meu lado só uma única vez? - Falei entrando na banheira, sentindo a água gelada no corpo. 
M: Eu sempre estou do seu lado - Musa se abaixou, sentou ao lado da banheira e olhou no fundo dos meus olhos - Eu sou você, lembra? E sempre vou está aqui, mesmo que não diga o que quer ouvir, sou sua consciência, não uma amiga, eu sirvo pra isso, pra apontar, julgar e até discriminar, mas também sou a mesma que unifico e organizo todas as suas sensações, emoções e experiências, eu vejo sua luz e sombra, o seu melhor e pior em todas as escalas, eu sou seu Superego, a ti mesma e agora eu vou te matar, tá? - Musa sorriu.


Me afundei na banheira e senti as mãos da Musa nos meus braços. Olhei o rosto dela turvo na água e lembrei da primeira vez que fizemos aquilo, quando ainda era doloroso e por amor, a Musa chorava enquanto me debatia, diferente de hoje, eu não tinha a frieza de me desligar,  e esse é o maior aprendizado e segredo do processo, vai doer, vamos sentir e vai passar, são as regras do jogo.
Senti a água entrar pelo nariz, invadi meus pulmões e senti as células do meu sangue serem detonadas. Eu estava morrendo. Como em um filme, me vi, mais uma vez, correndo em volta da roseira em frente a minha casa, ouvi a voz de meu pai me chamando atenção por está de calcinha na rua, estava na frente da rua quando vi pela primeira vez o Comendador no auge dos meus 11 anos, gargalhei com minha primeira melhor amiga, gritei no meio da rua que odiava minha mãe e ela me deu um tapa na cara, dei um abraço em Pepi - O Camelo com a certeza que ele estaria em todas as temporadas da minha vida, dançando U Don't Have To Call em uma das melhores apresentações de dança, o nascimento de Penélope... Senti meus pulmões encharcarem, estava asfixiada, vi o quadro que Penélope escreveu dizendo que sou a melhor mãe do mundo e sorrimos juntas, me senti inconsciente e perdendo os sentidos, tudo ficou preto e estava no porto, em frente ao cais, mais uma vez. 


A: Sério? - O Acompanhante falou abrindo os braços e me abraçando - Nossa! Que saudades suas! - Senti suas asas me envolver.
L: É bom ver você! - Falei com o choro preso.
AVocê sabe que não é só assim que você consegue me ver, né? Eu estou sempre pronto para está com você! Está tão distante, trabalhando sozinha, hein, não me quer mais por perto? Eu sou seu anjo da guarda, seu acompanhante, você nunca vai está só, nunca! - Ele falou me afastando e olhando nos meus olhos.
L: Eu sei, eu sei! Claro que não quero você longe, mas existe caminhos que preciso seguir sozinha, nem a Musa tem andado tanto comigo... - Falei abraçando ele novamente - Nossa, como é realmente bom te ver, não imaginava que estaria aqui, melhor, não imaginava que pararia aqui... - Falei olhando todo o porto, o cais e o mar. 
A: Você morreu, claro que eu tenho que está aqui, eu acompanho as suas passagens, mas o porto, bom, foi surpresa até pra mim, você tem uma certa obsessão por aquela casa, mas o porto é um bom lugar para está. 
L: Aqui também é meu lugar, Raabe. 
A: Aqui é seu único lugar, Lara, é o seu chamado, seu proposito. Você renascer aqui é a prova que não é mais singular e sim plural, você aprendeu mais uma lição, você odiava seu proposito e agora aceita, entende e precisa dele para viver, velhoooo, você cresceu mesmo! - Raabe bateu palmas 
L: Acho que aceitar isso foi um dos caminhos mais difíceis que eu trilhei, eu odiava esse porto, não queria sair daquela casa de jeito nenhum, e hoje eu amo esse lugar, e mesmo que doa, amo o meu proposito. 
A: Doí porque você ainda canaliza muito essa coisa toda de ver os outros partirem, se apega a elas, suga ao invés de filtrar, carrega ao invés de ensinar a andar, abraça quando deve dar as mãos, mas essa é você, intensa e cheia de essências, obvio que as partidas serão sempre dolorosas se você não aprender que eles sempre vão embora, se não aprender a lidar com isso. 
L: Acho que é isso que eu vou aprender aqui, né, por isso renasci aqui, pra aprender mais lições.
A: Não. Você já passou tantas vezes pela perdas e partidas, que sabe sim lidar com elas. 
L: Não, eu nunca sei lidar com isso, eu sinto tanta dor, é a pior parte do processo. 
A: Sabe sim, está tudo ai, dentro de você. Acredite em você, no seu potencial, na sua luz, que erradia não importa onde esteja, use tudo ao seu favor, seja a lição, está na hora de evoluir. 

 Acordei puxando todo o ar dos meus pulmões e levantei a cabeça para fora da banheira. A Musa sorria em pé na porta para mim e disse: 

- Vamos lá, você está pronta para outra!



Continua...

Um comentário :

Taiane Barreto disse...

Meu Deus Larissa,estou sem palavras pra esse novo capítulo. Eu me vi nele, me vi na banheira me deixando morrer, vendo o filme da minha vida, sentindo os pulmões inundarem, eu só não consegui renascer ainda, estou no processo de me afogar lenta e dolorosamente, mas sei que no fim, eu também vou emegir.
Você precisa escrever um livro! Você escreve muito!
Andei escrevendo ontem tbm, da uma passada aqui quando der. Estou totalmente perdida com o blog, voltei tem um tempo, mas confesso que ainda não tirei o tempo necessário pra fazer isso de verdade.
Um xero, e já estou ansiosa para o próximo.

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